Domar a cidade: Nadja em Paris, de Eric Rohmer

Fábio Ramalho

 

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Em 1964, Eric Rohmer filmou a estudante iugoslavo-americana Nadja Tesich, durante a temporada em que esta viveu em Paris com o objetivo – oficial, como ela faz questão de demarcar com a inflexão de sua fala – de desenvolver uma tese sobre Proust. O curta-metragem sobrepõe as imagens de Nadja percorrendo diversos espaços da cidade e a voz off da estudante, que compõe a sua estadia como um tempo de descoberta e aprendizado. O filme assume então o conhecido formato das impressões de viagens, nas quais ganham predominância as idiossincrasias e traços típicos, aqui tingidos por uma francofilia que se torna mais evidente pela inclinação da protagonista a mensurar distâncias em favor de uma empatia pelas particularidades locais.

Poderíamos dizer que aquilo que está faltando em Nadja em Paris é nada menos do que a cidade. Mas dizer isso implica, de certo modo, sugerir que há uma maneira correta de apreendê-la; é acreditar ainda na existência de uma cidade mais verdadeira que, não obstante, sucumbe aos clichês, ao peso das idealizações e a padrões de expectativas pré-moldadas. A Paris de Nadja, essa estudante que em algum momento atravessou as ruas, bares, cafés e parques da capital francesa, é tão boa quanto pode ser e tão precisa como qualquer outra. Em certo sentido, o curta de Rohmer não é sobre Paris, tampouco sobre sua protagonista. Ele é sobre uma relação e, como tal, expressa algo que não está contido em nenhum dos termos tomados isoladamente. Some-se a isso o tempo específico em que se desdobra o relato, os territórios que ele abarca – Saint-Germain-des-Prés, Quartier Latin, Montparnasse, Belleville, Parc des Buttes-Chaumont – e tem-se um conjunto de condições que, poderíamos dizer, é irrepetível.

Talvez esteja aí a conexão possível entre esta Nadja e a personagem de Breton: ambas investem no acaso, na aleatoriedade e na perambulação como condições de uma experiência. Tal conexão é, no entanto, na melhor das hipóteses aproximativa: pouco resta da revelação e do maravilhamento encontrado nos objetos, rostos e paisagens da cidade dos surrealistas. No curta de Rohmer, o relato poucas vezes se estende para além da voz em primeira pessoa que o focaliza. Não por acaso, a jovem estudante irá concluir que Paris lhe revela mais sobre si mesma do que propriamente sobre a cidade, e o que resulta de sua trajetória é uma personalidade que precisou do alheamento da capital estrangeira para amadurecer e se modificar, depurando-se dos resquícios de tudo aquilo que, do passado, já não valeria a pena guardar consigo. Muito distante da forte carga de estranhamento resultante das operações do surrealismo, temos aqui uma conjunção tal que, no que pesem as diferenças que eventualmente manifesta, o sujeito implicado é sempre igual a si mesmo, sem restos nem arestas.

Não obstante, uma vez que se trata aqui de cinema, resta um descentramento possível, e ele reside na não-conformidade entre voz e imagem. Fugindo à organização rígida da primeira pessoa e de seus encadeamentos, alguns objetos e olhares acenam como possibilidades, elementos não-explorados, recursos potenciais para a emergência de um novo relato. Observar isso não é uma tentativa de reabilitar, no filme, o componente de mistério e revelação presentes no cotidiano apresentado pela personagem homônima da literatura; apenas um esforço para lembrar que, afinal, na voz que tudo ordena e na câmera que recorta e seleciona subsiste algo que se inscreve a contrapelo. (Mas não seria esse, no fim das contas, o clichê supremo dos relatos de viagem? Há sempre algo que escapa: muda-se a direção do olhar, os investimentos da fala, e é toda uma nova série de associações que surge. A multiplicidade de caminhos possíveis é a condição primeira que permite ao viajante admirar-se da singularidade de seus trajetos e dotá-los de um valor e de um ineditismo que supostamente justificariam o esforço da narração).

Pode-se dizer, então, que Nadja em Paris é uma narrativa egoica, o que implica menos um julgamento moral do que uma consideração sobre sua forma de apresentação. Os mais cínicos não poderiam talvez deixar de notar que, na ausência de um poeta a quem endereçar os seus enigmas, essa esfinge falida, post-avant-garde, não teria outra escolha a não ser a de usufruir e ratificar cada uma de suas convicções, deixando pouco ou nenhum espaço para uma modificação dos pressupostos sobre aquilo que a cidade teria a apresentar. Em suma, há pouca margem para a transformação. Mas esse é apenas um lado da história e, frente ao despropósito de tentar estabelecer qualquer parâmetro de autenticidade, resta perguntar se não haveria algum interesse na revisitação dos lugares comuns. Nadja não vai ao café para ler, mas porque quer estar lá. Ela repete esse gesto desde uma posição que não é nem inclusiva, nem inteiramente alienada. Ela observa e replica. É uma presença marcada por uma desconcertante consciência de si. A ida ao café não é, portanto, um hábito: é a repetição de um hábito reconhecida como tal. Ou, seria mais apropriado dizer, é um costume inteiramente inventado e imediato, o tipo de expediente ao qual apenas os viajantes teriam o privilégio de recorrer sem serem acusados de cometer um contrassenso. Quando chegar à nova cidade, terei o hábito de ir ao café. Costumarei caminhar pelo parque…

Tal personagem, marcada pelas constrições de uma voz que se afirma por movimentos de constante auto-referência, não pode eleger o acaso como recurso para apreender a cidade sem colocar-se na impossível situação daquela que espera o inesperado. Nesse caso, os traçados vagabundos – aqueles desprovidos de finalidade, que perturbam qualquer convergência entre causas e efeitos – são substituídos por uma casualidade ensaiada cujo objetivo secreto é justamente o de tentar criar a oportunidade de perder-se. É esta a medida do impasse. Poderia Nadja, presa ao prazer reiterativo de suas conexões, alcançar algum tipo de abandono de si, alguma diluição? Jogando com a forte convencionalidade do relato, um outro conjunto de questões então se coloca. No curta de Rohmer, a capital francesa aparece como um lugar onde a flanêrie não é mais possível, não apenas devido à transmutação irreversível das condições que constituíram o contexto favorável à emergência dessa prática – Saint-Germain-des-prés não é mais o mesmo bairro da época de Juliette Greco: foi gentrificado – mas também porque essa experimentação estética da cidade estaria, na melhor das hipóteses, fadada a acontecer em um segundo grau, tributária desse conhecimento, demasiado consciente dessa saturação.

Assim, se é verdade que Nadja adere a um modelo que em última instância soa fechado e anacrônico, é preciso ao menos reconhecer que essa eleição não necessariamente resulta de uma ingenuidade. Menos do que isso seria desleal com uma protagonista que, afinal, sabe que a natureza do parque bem pode ter sido artificialmente moldada, mas ainda assim garante a pausa necessária para retomar o fio da sua história. A ficcionalização a que se dedica é, afinal, nada mais do que a operação lógica de um relato que aceita jogar dentro dos limites da conhecida forma da jornada iniciática.

Nadja à Paris / Nadja en París from Latakia on Vimeo.

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