Tag Archive | Fábio Ramalho

Filmes que se prolongam no tempo

Por Fábio Ramalho

roseaux

Quando assisti pela primeira vez a Les roseaux sauvages (Los juncos salvajes, 1994), de André Téchiné, há mais ou menos quinze anos atrás, fiquei intrigado com uma canção que era assobiada logo no começo, compondo a abertura do filme junto às letras coloridas e de traço infantil dos créditos iniciais. Além do efeito muito difícil de explicar, havia o fato de que eu sabia – tinha que saber, segundo as convenções que regem a espectatorialidade – que aquela música era importante, já que ela não apenas abria como também encerrava o filme, cobrindo o último plano antes de dar passagem aos créditos finais e, com eles, a outra canção que também causaria uma forte impressão em mim (sendo esta última, por outro lado, imediatamente reconhecível: Runaway, de Del Shannon). O fato de que aquela melodia – da qual eu desconhecia letra, origem e significado – pudesse me causar um efeito tão forte era, embora não elaborasse nesses termos, um atestado precoce do entendimento de que a matéria estética prescinde de qualquer interpretação ou sentido inteligível.

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Bicha, muda e desvairada

Por Fábio Ramalho

 

 

Quando a imagem da travesti brasileira conhecida como “bicha muda”, que já há algum tempo havia alcançado certo reconhecimento público na periferia de sua cidade de origem, Juazeiro do Norte, alcançou circuitos muito mais difusos e multiplicadores de visibilidade graças a um vídeo que começou a circular na internet em meados de 2008, fomos confrontados com a intensificação de um dilema que já havia marcado muitos outros memes: rir ou não de uma piada que pode ser considerada extremamente ofensiva, uma vez que joga com vários estigmas articulados – a sexualidade, o travestismo, a marginalidade econômica e a deficiência auditiva (sendo este último, talvez, o elemento menos suscetível ao deboche e mais desafiador aos critérios do bom gosto e da correção numa sociedade que, em relação aos outros aspectos mencionados, não parece se envergonhar muito dos seus preconceitos).

No meu caso, o primeiro e maior incômodo em relação ao vídeo foi a sua legenda. Diante da “bicha muda de Juazeiro”, o estranhamento veio para mim, em primeiro lugar, como efeito da rápida recontextualização de sua imagem. O qualificativo de Juazeiro indicava que a partir de então aquela presença havia se tornado uma imagem consumível em um escopo muito mais amplo e desterritorializado, daí a necessidade de assinalar, pela primeira vez, a sua origem. Embora bicha muda ou mudinha já fossem alcunhas correntes nos bairros dos Franciscanos e do Pirajá, dentre outras, ela era sempre ainda aquela presença constante e familiar que habitava e transitava pelas proximidades. Que ela agora ocupasse temporariamente a posição sempre móvel da nova famosa anônima da rede, de quem se ignorava origem, filiação e trajetória, não deixava de aparecer para mim, na época, como um tipo de violência.

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Domar a cidade: Nadja em Paris, de Eric Rohmer

Fábio Ramalho

 

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Em 1964, Eric Rohmer filmou a estudante iugoslavo-americana Nadja Tesich, durante a temporada em que esta viveu em Paris com o objetivo – oficial, como ela faz questão de demarcar com a inflexão de sua fala – de desenvolver uma tese sobre Proust. O curta-metragem sobrepõe as imagens de Nadja percorrendo diversos espaços da cidade e a voz off da estudante, que compõe a sua estadia como um tempo de descoberta e aprendizado. O filme assume então o conhecido formato das impressões de viagens, nas quais ganham predominância as idiossincrasias e traços típicos, aqui tingidos por uma francofilia que se torna mais evidente pela inclinação da protagonista a mensurar distâncias em favor de uma empatia pelas particularidades locais.

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Uma promessa de futuro

por Fábio Ramalho

O boom se tornou assunto recorrente. Sempre que alguém o enuncia, multiplica também os seus efeitos, pois ele é determinado não apenas pela concretude dos dados materiais, mas também – e talvez sobretudo – pela propagação do sentimento que celebra. Ele se realiza como antecipação: só existe quando acreditamos que o futuro se fez presente e, sendo assim, é indissociável da noção de progresso. Sua força é centrífuga, sua imagem é a de uma curva ascendente e seu movimento característico é o de expansão.

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A imagem e o salto

Por Fábio Ramalho

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Há um pequeno texto de Jacques Rancière que, se não pode ser considerado representativo de sua obra, por outro lado mostra-se valioso para a discussão sobre política na qual o autor está inserido. Trata-se de uma intervenção realizada na ocasião dos vinte anos da morte de Michel Foucault (The difficult legacy of Michel Foucault, junho de 2004, consultado aqui na edição em língua inglesa do livro Chroniques des temps consensuels). O curto argumento ali presente importa para nós porque Rancière, sem a dose de reverência ou descrédito que costuma prevalecer  nesse tipo de efeméride, procura discutir em que medida o pensamento e a ação se encontram relacionados na obra do filósofo francês falecido em 1984. Se a herança de Foucault apresenta problemas para aqueles que pretendem fazer um balanço de seu trabalho e colocar à prova a sua atualidade é justamente porque, como afirma Rancière, não há linhas fáceis de continuidade conectando essas duas instâncias. Nada nos assegura que o pensamento conduz à ação, ou que os fatos e gestos da vida constituem matéria suficiente para tornar o mundo imediatamente legível ao pensamento (não, pelo menos, de maneira transparente ou inequívoca). Algo se interpõe entre os dois, e essa lacuna nos obriga a problematizar noções por vezes tão caras à tradição política e a certos discursos articulados no campo da estética, como, por exemplo, a ideia de conscientização.

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