A imagem e o salto
Por Fábio Ramalho
Há um pequeno texto de Jacques Rancière que, se não pode ser considerado representativo de sua obra, por outro lado mostra-se valioso para a discussão sobre política na qual o autor está inserido. Trata-se de uma intervenção realizada na ocasião dos vinte anos da morte de Michel Foucault (The difficult legacy of Michel Foucault, junho de 2004, consultado aqui na edição em língua inglesa do livro Chroniques des temps consensuels). O curto argumento ali presente importa para nós porque Rancière, sem a dose de reverência ou descrédito que costuma prevalecer nesse tipo de efeméride, procura discutir em que medida o pensamento e a ação se encontram relacionados na obra do filósofo francês falecido em 1984. Se a herança de Foucault apresenta problemas para aqueles que pretendem fazer um balanço de seu trabalho e colocar à prova a sua atualidade é justamente porque, como afirma Rancière, não há linhas fáceis de continuidade conectando essas duas instâncias. Nada nos assegura que o pensamento conduz à ação, ou que os fatos e gestos da vida constituem matéria suficiente para tornar o mundo imediatamente legível ao pensamento (não, pelo menos, de maneira transparente ou inequívoca). Algo se interpõe entre os dois, e essa lacuna nos obriga a problematizar noções por vezes tão caras à tradição política e a certos discursos articulados no campo da estética, como, por exemplo, a ideia de conscientização.
Parece-me que é sobretudo por tomar como dada a possibilidade de uma passagem sem fissuras do pensamento à ação que muitos detratores vão criticar, por exemplo, as teses de Foucault sobre os modos pelos quais o poder incide na sociedade moderna. Deplorar o fato de que as teorizações sobre uma microfísica do poder lançam suspeitas sobre algumas verdades comumente assumidas por diferentes movimentos sociais e grupos políticos – suscitando o risco de, em última instância, desacreditá-las – é apostar em um raciocínio que de certo modo inverte causas e efeitos. Como se precisássemos mais de um pensamento que ratifique as respostas já conhecidas do que obras que invistam sobre novas maneiras de apresentar um problema; livros que, como Rancière tão bem sintetiza, “produzem efeitos na exata medida em que não nos dizem o que devemos fazer com eles”.
Segundo Gilles Deleuze (em seu livro Foucault), a microfísica do poder vem questionar alguns postulados da esquerda tradicional. Dentre eles, o postulado da propriedade (o poder é algo que grupos ou classes detêm, uma vez conquistado), o postulado da localização (o poder se situa no interior de aparelhos e instituições), o postulado da modalidade (o poder é exercido pela violência ou pela ideologia), dentre outros. É da assimilação dessa crítica como impasse que parece derivar a formulação persistente, embora vulgar, de que, seguindo as bases de tal raciocínio, não restaria muito a ser feito – as formas de resistência estariam invalidadas de antemão.
E, no entanto, sabemos que Foucault era também um militante, envolvido em muitos dos problemas de seu tempo e especialmente engajado em causas como a contestação às bases do sistema prisional. É disso que Rancière nos lembra ao escrever esse necrológio tardio que é o seu texto de 2004. Foucault não se esquivava à ação, tampouco à eventual necessidade de “tomar partido” nos embates de seu tempo, e a pergunta a que somos inevitavelmente conduzidos é: que força o impelia? Amparado em que convicções? É nesse ponto que Rancière retoma um belo elemento presente em Foucault: a convicção de que há um “sentimento do intolerável” que nos convoca à luta, a despeito de todas as contradições e incertezas que nos povoam. Entre pensamento e ação haveria então “um salto que nenhum saber justifica e nenhum saber administra”.
Foucault nunca renunciou ao seu lugar como teórico, e assim nos concedeu uma lição sobre essa atividade. A teoria é o lugar da dúvida, e pensar significa colocar sistematicamente à prova as nossas certezas (vide sua digressão sobre as necessidades que o levaram a redefinir os termos de sua pesquisa, na introdução ao segundo volume da História da sexualidade). O trabalho sobre os conceitos não é, portanto, algo que empreendemos simplesmente para dar sustentação a uma crença que trazemos de antemão e que pretendemos legitimar. A cobrança por uma utilidade das ideias, por sua vez, é o modo pelo qual opera a lógica tecnicista que reivindica como único critério de valor a aplicabilidade e a quantificação dos resultados. A contrapelo dessa lógica, o trabalho do pensamento segue um tempo que lhe é próprio. Quando se pretende crítico, esse trabalho não se desconecta das contingências que o cercam, mas estabelece uma distância a fim de melhor elaborar diferentes sentidos para os acontecimentos, bem como suscitar formas de embate e disputa.
A ação, por outro lado, ocorre sob o signo da emergência. Ela parece decorrer sempre de uma complexa articulação entre distintos desdobramentos e composições de forças que contribuem para alçar um problema de cunho público a diferentes patamares de mobilização, ampliando assim – ainda que, por vezes, mediante gestos predominantemente simbólicos – o escopo das ações a ele relacionadas.
Nas últimas semanas, duas questões extrapolaram os circuitos nos quais pareciam estar anteriormente em pauta e ganharam um novo status como causa pública. No Recife, nordeste do Brasil, o debate em torno da degradação urbana cada vez mais intensa a que a cidade tem sido submetida está suscitando uma mobilização crescente e descentralizada que, diante do ostensivo emprendimento de “revitalização” do Cais José Estelita – na verdade, parte de uma investida contra as paisagens, a circulação e os usos dos espaços públicos na cidade, realizada em nome da especulação – mostra-se empenhado em articular alternativas para enfrentar a aliança perniciosa entre gestão pública e construtoras. Em Santiago do Chile, demonstrações de perplexidade e consternação diante da morte de Daniel Zamudio, vítima do ataque homofóbico cometido por um grupo neonazista, pareceram ultrapassar os segmentos organizados em torno dos movimentos LGBTT e simpatizantes, alcançando parcelas da população que, embora não se mostrem especialmente sensíveis aos problemas enfrentados pelas minorias sexuais, viram na extrema violência do crime algo absurdo demais para ser ignorado.
Para além da legitimidade incontestável de tais reivindicações e de sua co-incidência, alguns aspectos aproximam os dois casos anteriormente mencionados. Ambos têm seus efeitos agravados pela omissão ou conivência do poder de polícia – em seu sentido amplo – e de instituições conservadoras que, em nome de valores reacionários – sejam eles religiosos ou de mercado – convertem a cidade em um ambiente opressivo no qual a violência é exercida sobre o corpo via intolerância sexual ou segregação espacial. Poderíamos dizer também que estas duas cadeias de eventos não estão marcadas por nenhuma excepcionalidade ou ineditismo: tanto a especulação imobiliária quanto a violência homofóbica constituem problemas historicamente persistentes e de consequências cumulativas.
O que catalisa, então, os desdobramentos que somos levados a enxergar como pontos de inflexão ou de intensificação dos enfrentamentos? No caso de Daniel Zamudio, em especial, por que esta e não outras mortes (haja vista que são, lamentavelmente, frequentes) parece ter mobilizado tantas pessoas, sugerindo inclusive a possibilidade de uma alteração concreta nos mecanismos de enfrentamento da homofobia em seu país? Poucos, acredito, afirmariam ignorar a recorrência de atos violentos contra homossexuais. Também não parece plausível supor que as sucessivas investidas contra a paisagem urbana de uma cidade tenham passado despercebidas pelas muitas pessoas que agora, de modo mais enfático, estão multiplicando os focos de ação ou enriquecendo as iniciativas que já há algum tempo buscam dar visibilidade a esse debate. Não se trata, portanto, de algo como uma súbita tomada de consciência. O mais plausível é supor que os fatos alcançaram uma configuração tal que desafia a nossa imobilidade e nos convoca, a despeito das contradições que marcam as diferentes posições em jogo.
Outro elemento para pensar essa questão pode estar também assinalado pela relevância das imagens que acompanharam a repercussão de tais casos e que, em certa medida, condensam os sentimentos que eles suscitam. Temos imagens que apontam para o passado: inscrições de uma vida que, interceptada por um ato de extrema violência, foi condenada a subsistir para sempre como ausência irrecuperável. Noutro caso, as imagens simulam um futuro de contornos abjetos, e tamanha é a desproporção daquilo que elas antecipam que sua mera veiculação já parece contribuir para colocar em descoberto todo o despropósito dos interesses aos quais se presta a trama de sua execução.
A incidência destas imagens ganha uma relevância e uma visibilidade em certa medida imprevistas, se considerarmos os contextos e configurações mais imediatos nos quais elas emergiram. A circulação de ideias sem dúvida toma parte nessa dinâmica, mas somos levados a considerar que ela, por si só, não garante a mobilização – senão por outros motivos, pelo menos porque não ignoramos que saber da existência da barbárie não necessariamente nos impele a lutar contra ela. Na já incerta relação entre pensamento e ação, seria preciso portanto situar um terceiro elemento não menos complexo e perguntar que lugar cabe à imagem. Ou, mais precisamente, qual o estatuto das imagens cuja força maior advêm não tanto daquilo que comunicam – e cuja verdade intimamente já conhecemos – mas que nos implicam e convocam em uma instância menos dicursiva, menos pedagógica e, talvez por isso mesmo, mais difícil de sobrelevar.
Trackbacks / Pingbacks